Santo André

Blog da Vila
por Léa Penteado

Antes de existir blogs, quando havia concurso de redação escolar, eu já escrevia. A curiosidade me levou aos 20 anos a ser repórter em uma editora de revistas e quando vi era jornalista. Portas foram abrindo e, além de centenas de reportagens contando fatos e histórias de anônimos e celebridades, escrevi um espetáculo para teatro, fui autora de pequenos seriados para a TV, argumento para um filme, três livros e, quando chegou o blog, descobri que podia ser contadora da minha própria história e o que tivesse no entorno. Escrevo por que é vital, é como respirar.

Em novembro de 2002, fugindo da crise econômica na Argentina e em busca da Bahia que conheciam nos livros de Jorge Amado, os rapazes da cidade de Rosário chegaram a Santa Cruz Cabrália. Passaram por Coroa Vermelha, foram a Trancoso, mas não deu match. Vinham com um convite para conduzir um restaurante que seria aberto junto a uma nova pousada, a Vila Araticum, projeto também de um argentino. Sobre Santo André, tudo o que sabiam era a imagem de um cartão-postal com um coqueiro em uma praia deserta. Foi na balsa, durante a travessia do rio João de Tiba, que sentiram estar chegando ao lugar sonhado.

Pablo e Amadeo, respectivamente com diplomas em Relações Internacionais e Arquitetura, buscavam uma mudança. Trazendo como experiência em gastronomia o tempo em que estiveram à frente do Café de la Ópera — um bistrô no Teatro El Círculo, espaço de óperas — e do Guest House, restaurante que começou como ponto de encontro entre amigos, eles desembarcaram com esperança. Os primeiros tempos em Santo André, porém, foram difíceis. Os poucos moradores e turistas não se mostraram muito receptivos ao estilo da cozinha aberta, com o fogão exposto como estrela da casa.

Foi a equipe da atriz, cantora e empresária Tania Alves, que montava um spa no hotel vizinho, que primeiro se encantou com o conceito e se tornou cliente fiel. Mesmo com jantares e almoços especiais, muitas vezes com o apoio da Carminha — cozinheira reconhecida no povoado —, os negócios não prosperaram. Faliram e, mal terminou o verão, voltaram para a Argentina.

Restabeleceram-se financeiramente cozinhando o que haviam aprendido na Bahia, levando na mala os temperos que faziam a diferença. Retornaram meses depois, mais confiantes e certos do que queriam construir. Aos poucos, foram conhecendo a cultura local, estreitando relações. A presença quase diária de Ugo Colombo (Pousada Victor Hugo) no restaurante funcionou como um aval para que outros empresários e moradores fossem conhecer “os rapazes de Rosário”. No ano seguinte, lançaram voo solo: inauguraram o Casapraia — mais que um restaurante, um estilo, uma grife.

Até 2012, quem passou por Santo André sabe do que se trata. O espaço nasceu das ruínas de uma casa. Com os conhecimentos do arquiteto Amadeo, o andar superior foi transformado em moradia do casal, enquanto o térreo abrigava o restaurante, cineclube, espaço de eventos, beach club e tudo o que mais inspirasse diversão, boa gastronomia e ótimas conversas. O sucesso foi imediato.

Em tempos sem redes sociais, as notícias se espalhavam pela boca a boca e reportagens em revistas, como a da GOL, que destacava a ousadia do cardápio, com pratos como “lagosta com chocolate”. O Casapraia era um misto de sofisticação despojada e ar blasé, a nobreza argentina nos talheres de prata e na louça de porcelana, mesclada com enormes conchas da praia e toalhas de renda. Contracultura, ironia e muito humor — tudo isso com muita elegância, em um povoado com pouco mais de 500 habitantes.

Surfando na onda das semanas de moda de São Paulo, realizaram, em pleno verão, duas edições da Santo André Fashion Weekend, desfiles com nativos e convidados em trajes surreais. Em uma das edições, Glorinha Kalil estava na plateia. Os filmes recém-lançados chegavam via internet e eram exibidos aos sábados, em telão no lounge, com pacotinhos de pipoca distribuídos ao público. Lembro de assistir, em 2007, poucos meses após o lançamento na Europa, “Piaf – Um Hino ao Amor”. E, em outro verão, ao ar livre, o documentário “Pina”, de Wim Wenders, celebrando a vida e obra da coreógrafa alemã Pina Bausch. Esses momentos provocavam encantamento e tornavam as férias inesquecíveis.

Na baixa temporada, criavam eventos como a Noite Dalí, em que o restaurante foi decorado com pães de diversos formatos pendurados no teto, e os anfitriões recebiam os convidados com enormes bigodes, em homenagem ao pintor espanhol. Como moravam em cima do restaurante, não havia privacidade. Mesmo que desejassem ficar sozinhos, alguém sempre chegava — e o movimento recomeçava. Nunca foi pelo dinheiro, mas pelo prazer.

Até que, um dia, deixaram de olhar para a imensidão do mar à frente de casa e passaram a enxergar um mundo interior mais silencioso e profundo.

Um convite ao autoconhecimento os levou ao xamanismo, numa guinada de 180 graus. E como tudo no universo se move em sincronia, quando começaram a cogitar o fechamento do Casapraia, foram procurados por uma empresária paulista com uma proposta de arrendamento do espaço para o filho, mantendo a marca. No auge, encerrava-se a grife criada por Pablo y Amadeo. A marca resistiu por mais alguns meses, mas já não carregava a alma dos seus criadores.

Amadeo começou a retornar aos projetos de arquitetura, enquanto Pablo mergulhou no universo holístico ao conhecer a Xamã Anna Xara, fundadora da Escola Gaia, que passava pela vila trazendo a medicina do Tambor Sagrado. Um portal se abriu e encontrou continuidade na Terra Mater, espaço dedicado ao xamanismo criado pelo médico José Roberto Ayres, no povoado de Santo Antônio. Vieram as formações de Pablo como facilitador xamânico, mestre em Reiki, shiatsu, alinhamento energético e constelação sistêmica.

A Terra Mater em 2017 foi transferida para uma área adquirida de 11 hectares, nos arredores de Santo André — em sua maior parte com a natureza preservada — por solicitação do Dr. José Roberto, pouco antes de sua partida. Com estrutura despojada, acampamento no meio da mata e três nascentes, o local, oficialmente registrado como Centro de Desenvolvimento Humano, é carinhosamente chamado de “Casapraia mística”.

É com esse conhecimento que Pablo Delgado retorna aos eventos, agora em outro formato. De 16 a 24 de agosto, ele realizará a imersão “Caminhando em Beleza” uma experiência de reconexão com a natureza e com o próprio ser. Um mergulho de 9 dias em ambientes naturais da região e nos espaços internos de cada participante, com passeios por praias, matas, rios, aldeia indígena e práticas xamânicas voltadas ao equilíbrio, ao desenvolvimento pessoal e ao despertar do curador interno.

Amadeo, por sua vez, continua criando projetos de arquitetura e fortalecendo sua marca no sul da Bahia. O casal, que em 2013 se uniu em uma cerimônia holística no povoado de Santo Antônio, ainda carrega o sotaque argentino, conserva o esplendor da Mata Atlântica em suas terras, e o Casapraia, com gratidão, tornou-se uma doce memória.

 

Esta reportagem também disponível na @revistabacana

Fotos memoria Casapraia :  Alexandre Campbell

Informações: (73) 99900-2366
www.caminhandoembeleza.com.br